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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

LAURINDA E AS FILHAS

(foto Google Imagens)

No dia do casamento de Laurinda, na volta da igreja, o pai comentou ao ouvido da mulher, “tudo que nossa filha desejava na vida era casar e realizou”. E iniciou comentários irônicos e risadas até chegarem ao portão de casa. Ao descer do taxi, a mãe indignada falou já brava, “cala a boca, Carlos, nossa filha é santa, Fred foi o primeiro namorado.” O taxista assustou com o gargalhar frenético do pai.

Os noivos alugaram um apartamento de quarto e sala em um bairro longe do centro da cidade e o rapaz, chaveiro num quiosque no centro da cidade, a partir da mudança passou a chegar a casa diariamente com a cara cheia de cachaça surrando a mulher que, passivamente, aceitava o fardo por entender que se o marido a ajudara a realizar o sonho do casamento, deveria suportar calada as mazelas impostas. Enfrentava o bafo de bebida na hora do amor e os tapas provenientes dos ciúmes exagerados do marido com a benevolência dos mártires. Enquanto isto, remoía as palavras do pai às vésperas do casamento, que advertia “ filha, está cega ao comportamento do rapaz, é um beberrão”.

A rotina diária pesou para a professora. Além de afazeres domésticos, preparo da comida, lavação de roupas e arrumação da casa, trabalhava quarenta horas em escola pública da periferia. A noite se desmanchava de amores ao marido que chegava insatisfeito, bêbado.

Planejou o primeiro filho a partir do aniversário de um ano de casados, com esperança do marido amainar a irreverência.

A barriga crescia e a moça constatou que o marido detestava crianças, passando a gestação inteira ameaçada de abortar. Com a proximidade do nascimento, o dinheiro ficou escasso e mudaram para a casa dos pais onde o marido entendeu ser desaforo morar no quarto nos fundos do quintal e exigiu que os sogros mudassem para lá, liberando a casa ao casal.

A gravidez adiou a rotina de sofrimentos e o marido parou de beber por obra e graça do pastor Bené, amigo de uma vizinha, que diariamente os visitava e rezava por bom parto e felicidade do casal.

Laurinda deu a luz uma menina loira como a mãe, mas no décimo mês de nascida, apresentou retardo no desenvolvimento. Uma vizinha que a acompanhava desde o nascimento, aconselhou a família a consultar um médico o quanto antes o qual, após exames, indicou cirurgia cerebral urgente. Após a terceira operação na cabeça da criança, com intervalos de seis meses, o médico desalentado adiantou que não via solução. Diagnosticou paralisia cerebral e previu que viveria somente até adolescência. Naquela noite Laurinda trancou-se no quarto e chorou copiosamente. Não tinha como dividir a tristeza e refletir sobre o que passara e ainda viria pela frente com o marido beberrão e a filha naquele estado.

A menina crescia dependente da mãe e da avó que agora ajudava com afinco nos cuidados com a neta, que as requisitava dia e noite a medida que o peso aumentava e apareciam sinais da adolescência como a menstruação.

Desgostoso com a situação, quando soube que a mulher ficara grávida pela segunda vez, arrumou as malas, aplicou a última surra nela, deu as costas e desapareceu. No meio de um inverno rigoroso, nasceu a criança e, com a ajuda do pastor Bené e de doações da comunidade, teve fôlego para seguir sua vida.

O parto da segunda filha foi esperado com apreensão, logo tranqüilizado pelo pediatra que diagnosticou uma criança saudável. Esta criança aliviou a rotina da casa e a alegria voltou. Passaram a ouvir novamente o radinho de pilhas que a moça ganhara quando solteira e as mulheres dançavam durante a faxina na velha casa de madeira, toda carcomida pelos cupins.

Quando a pequenina estava com sete anos, as vésperas de Natal correu a acordar o avô que descansava da preparação dos enfeites da noite anterior, e o encontrou mole e gelado. O velho faleceu dormindo de ataque cardíaco fulminante. Seis meses depois, a avó, deprimida após a morte do marido, amanheceu com falta de ar e acabou morrendo de pneumonia, deixando Laurinda a cuidar sozinha das meninas.

O prognóstico do médico com relação à filha doente demonstrou ser completamente errado e ela sobreviveu até a vida adulta, quando em uma gelada manhã, a menina parou de respirar devido a deformação no tórax que apertou o pulmão até asfixiá-la.

Com a morte da filha deficiente, Laurinda passou a ver o mundo de outra forma e procurou a filha mais nova para conversar. Receava que a idade com suas mazelas a impossibilitassem de contar detalhes da vida. No primeiro dia de conversas, fez a moça sentar no sofá rasgado da sala de jantar e iniciou o relato dizendo que o verdadeiro pai dela não era o constado no registro de nascimento. “Fred após o nascimento de tua irmã retornou a beber e, em represália, parei de manter relações sexuais com ele e assim permanecemos até ele sair de casa.

A moça ouvia a mãe atentamente. Laurinda queixou-se da rotina, acrescentando que isto a fazia alimentar fantasias e permissões, única forma de suportar a situação. Acendeu-se nela um fogo interno que minou a resistência ao pastor Bené que os visitava para orações as sextas feiras. No início, Fred participava, mas passou a desprezar e, como chegava bêbado, caía na cama e os deixava a sós. “Aos poucos, ganhamos confiança nas bebedeiras e passamos a namorar no sofá da sala, este mesmo que você está sentada”. A mãe suspirou fundo “confesso que aos poucos fomos nos descuidando”. Foi a cozinha buscar água para as duas e continuou o relato. Em uma noite tempestuosa, que o marido desmaiara na cama e ela e o pastor amaram-se esquecidos após a oração, Fred levantou no meio da noite e surpreendeu-os nus e abraçados.

Na verdade, Laurinda pensava em separar, mas as coisas a partir daí tomaram outro rumo e o marido saiu de casa. Na surra de despedida quase perdeu a criança. “Bené e eu continuamos a encontrar semanalmente e, quando você nasceu, não pode te registrar por ser casado. Procurei um cartório no interior e expliquei que seu pai desaparecera logo que engravidei e queria te registrar. Consegui com facilidade, desembolsando certa quantia ao escrivão. É por isso que na certidão consta o nome de Fred.

“Atualmente, teu pai, é pároco na igreja da Quintino Bocaiúva, mas não quero que o procure”.

A filha nem ouviu o último comentário da mãe. Saiu porta afora disposta a conhecer o pastor. Ao chegar à igreja, mal disfarçava a inquietude e perguntou pelo pai ao pastor que molhava as plantas.

“Bené faleceu há dois meses, moça, teve um mal súbito ao discutir com um bêbado que o procurou durante o culto”.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Quanto riso, óh, quanta alegria, mais de mil beijocas no salão...

(texto publicado no jornal Zero Hora de Porto Alegre-RS em 17/02/2012-caderno Zona Sul)

(Foto: arquivo pessoal)


Nas décadas de sessenta, setenta, os principais clubes do bairro eram o Comercial e o Tristezense. O primeiro na rua Otto Niemeyer, 165, para o lado da praia, onde hoje funciona o Tribunal de Justiça e o segundo, localizado na Armando Barbedo número 300. Realizavam festas de debutantes e casamentos, campeonatos de bolão, reuniões dançantes, campeonatos de futebol de salão, inclusive patrocínio de time de futebol de campo, o Tristezense Futebol Clube. E para provar a capacidade administrativa dos clubes, promoviam frequentadíssimos bailes de carnaval em dias alternados para alegria dos foliões, que garantiam plena lotação. Parceria perfeita. Havia tempo para descanso das bandas, da turma que limpava as dependências dos clubes e muita satisfação dos carnavalescos que podiam brincar os quatro dias.

A moçada mais abastada se bandeava para os lados da Vila Assunção, e frequentava o Veleiros do Sul e o Jangadeiros. Outros ainda iam mais longe e se esbaldavam na SABI – Sociedade Amigos do Bairro de Ipanema, onde certa vez tive a satisfação de conhecer ao vivo a Elis Regina que por ali estava com a concorrente da época, Érica Nonimar. Mas minha turma gostava mesmo era dos clubes da Tristeza.

Iniciávamos o ano reunindo aos sábados na casa de amigos para encarnar o “espírito carnavalesco”. O mês de janeiro era dedicado aos ensaios, tocando tamborins, bumbos, pandeiros e cuícas, regados a guaraná e coca-cola, porque bebidas alcoólicas eram proibidas pelas mães e porque era “mico” embriagar nas casas de família. Mesmo sem álcool no organismo, nada desanimava. Na foto apareço de costas tocando bumbo e o Jorcelino, colega de curso ginasial, pandeiro. Estes ensaios eram antológicos. O improviso começava no cantar as tradicionais marchinhas, para desespero das anfitriãs, “deflorei a margarida, margarida mal me quer, deflorei a margarida, margarida bem me quer....” ou “mamãe eu quero, mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar, mama no bode, mama no bode que tua mãe não pode....”. Tararatará – tatá, tataratatatá. “Quanto riso, óh, quanta alegria, mais de mil beijocas no salão....” e neste momento sapecávamos beijos nas bochechas das distraídas. Quando chegavam as noites de Momo, o bloco entrava afinado e triunfante, a cantar em alto e bom tom as marchinhas ensaiadas.

Apesar das inúmeras brincadeiras entre pares, tínhamos como regra jamais bulir as meninas e, se um desconhecido mexia com elas a briga poderia acabar a festa, como aconteceu certa vez no Tristezense. A guria da turma foi “desrespeitada” por um moleque de outro bairro e a briga generalizada só amainou quando a Brigada interviu e mediou pedidos de desculpas de ambas as partes. Após os ânimos acalmarem os antagonistas abraçados, dançaram até o sol raiar. Mais importante do que brigar era aproveitar o carnaval.

Ao mostrar a foto a amigos de Brasília, me entregaram um bumbo e pediram para tocar. Admiti envergonhado que nunca soube tocar. Apenas enrolava. Mas se for perguntado a algum integrante do grupo da Tristeza, jurará que sambou ao som do instrumento.

O carnaval da Tristeza era só alegria.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

GOIÁS VELHO NÃO, CIDADE DE GOIÁS

(Foto: Mosteiro da Anunciação, Cidade de Goiás - GO - arquivo pessoal)

O passeio à Cidade de Goiás ou Goiás Velho como é conhecida, quase foi adiado duas vezes. A primeira por descaso humano e a segunda pela força da natureza. Explico. Entre Itaguari e Itaberaí, cerca de dez quilômetros da estrada asfaltada retornou ao estado original de terra e buracos. Após a inauguração do asfalto, foi abandonada a própria sorte. Sem reparos, se tornou o paraíso dos mecânicos e borracheiros, verdadeiro rally para turistas. Em um segundo momento, já no trecho Itaberaí/Goiás, chuvas torrenciais testaram a coragem e a visão da estrada em meio ao aguaceiro que anulava o limpador de pára-brisa. Persistente e acreditando que ao final dá tudo certo, a chegada sem incidentes aconteceu às quatro da tarde de uma sexta-feira de janeiro passado. A baixa visibilidade prejudicava. Mal pude observar a placa indicativa de perímetro urbano e perceber as primeiras casas. À entrada da cidade, segui a lâmina d’água que descia pela rua lateral da Praça do Coreto a procura do rio Vermelho, com o carro equilibrando cuidadosamente entre as pedras irregulares do calçamento.

Dias antes a cidade passara por maus bocados. A enxurrada elevara o nível do rio Vermelho e fez estragos na lateral do Hotel da Ponte, impossibilitando o acesso ao prédio. Ruíra parte do muro de contenção e fitas amarelas isolavam o local. No monumento da cabeceira da ponte que dá acesso a casa de Cora Coralina, a ambulância dos Bombeiros estacionada espreitava o rio ameaçador e dava a dimensão do risco. O cenário remetia a enchente de janeiro de 2001, quando a cidade apareceu no noticiário afogada pelas águas do rio Vermelho que teimava em pular do leito.

Estacionei num comércio de doces para provar cocada e usar o banheiro. A comerciante rememorou a história do transbordo do rio e a ameaça a casa de Cora Coralina. “Houve um grande prejuízo material mas, graças à Deus, tudo foi recuperado. Na época a ponte ruiu seu moço”. A cidade, que vive a beira da memória da escritora, temeu pelo futuro. Faz cerca de dez anos que aconteceu e tudo está recuperado. Quase. O trauma não. Quando as chuvas de janeiro caem pesadas ou algum temporal desaba, os moradores recordam o fantasma da tragédia.

Arcelina Helena foi colega de pós graduação em Jornalismo Literário em Goiânia. Jornalista, professora aposentada da Universidade de Brasília é oblata beneditina do Mosteiro da Anunciação. Foi fácil encontrar a morada dos monges. Infelizmente, até porque minha visita foi inesperada, Arcelina viajara a casa de parentes em São Paulo. Lamentei desperdiçar a oportunidade de abraçá-la A informação foi dada pelo jovem monge José Maria que apresentou as instalações e convidou para hospedagem.

Localizado após o mercado Público, na rua Padre Felipe Leddet, o Mosteiro é um lugar bucólico, com jardins bem cuidados de pedras incrustadas e grama bem aparada compondo o cenário do verde macio e da rudeza da pedra natural. Não há luxo. A mobília e as instalações são simples, mas há conforto inegável nesta simplicidade e aura de harmonia e paz em tudo que se faz, que se ouve e se pensa. No hall de entrada do alojamento permaneci por muitas horas a ler o romance turco de Orhan Pamuk, O Museu da Inocência do qual destaquei para este momento de minha viagem a frase de início do livro que peço licença ao autor para transcrever aqui “Era o momento mais feliz de minha vida, mas eu não sabia. Se soubesse, se tivesse dado o devido valor a essa dádiva, tudo teria acontecido diferente?”

A suíte oferecida era a única do mosteiro, os demais são quartos, a cada dois dividem um banheiro. O carro ficou em segurança, numa garagem privativa. Apesar da rigidez dos horários aos religiosos, tinha liberdade de chegada e saída. Bastava entrar, fechar o portão, calçar o carro para não escorregar na rampa íngreme do estacionamento e apagar as luzes que facilitavam o acesso noturno ao alojamento. Os monges recolhem cedo, levantam com o sol e seguem a rotina de orações e preces, numa vida dedicada ao trabalho com Deus, com as obras sociais e no cuidar do Mosteiro com esmero.

Pela manhã, éramos acordados pelo sino a indicar o início das atividades monásticas. Hóspedes estavam desobrigados a participar. Seguia dormindo. Sempre atento, o irmão José Maria indicava locais turísticos a visitar e onde fazer refeições e assim na primeira noite conduziu ao quiosque onde provei um delicioso caldo de feijão com espetinho de churrasco ao som do telão com dupla sertaneja. Terminei a noite com novo amigo. Um gatinho que adestrei alimentando com pedaços de carne espetadas na ponta de palito, mas apenas quando sentava e unia as patas dianteiras para merecer o petisco. Imagino que agora está fazendo esta firula esperando recompensa dos frequentadores.

À noite, cansados, recolhemos cedo, para um merecido descanso, embalados pela serenata de grilos, coaxar de sapos e o ruído do rio Vermelho, cuja água desliza em leito de pedras caindo com força de cachoeira.

Amanheci renovado e visitei as instalações do Mosteiro. Percorri a horta com todo tipo de verduras em amplas plantações cobertas, sem agrotóxicos, protegida dos predadores por rede. Senti-me frustrado em hospedar na época de férias das cozinheiras do Mosteiro e assim perder a oportunidade de lá fazer as refeições. Irmão Zé Maria indicou o mercado público para o desjejum. E foi mais uma sugestão acatada e aprovada vinda do religioso. Lambuzei com o delicioso pastel recheado de queijo feito na hora, acompanhado de suco de laranja, seguido de café com leite e bolinho de arroz que se tornou o petisco das manhãs.

O segundo dia reservei a casa de Cora Coralina. Algo dizia ser um local mágico. Quando entrei, a emoção que senti até agora não consegui definir. Existe uma vibração muito grande naquela casa. Nos utensílios, na cozinha, nas panelas, nas fotos. O quarto com a cama que dormia, os objetos de uso da mulher que considero um ícone de sabedoria de vida. Ler seus textos e saborear a simplicidade das palavras e reflexões de vida dentro da casa, observar os objetos que manuseou por anos, a cadeira enviesada pelo recostar da cabeça, a bengala de madeira que a apoiou até o fim, nunca mais esquecerei. A fama tardia após os 75 anos, a amizade com Maria dos Grampos, a moradora de rua acolhida no porão da casa, somam a história emocionante desta mulher. Ainda existe vida dela em tudo. Tive a impressão que sua figura nos faria surpresa. Cora Coralina é prova de poder o que se quer. Que nunca é tarde para construir um legado para a humanidade, basta esperar o momento certo, deixando agir dentro de cada um a vontade e a magia da vida. Evoluímos exercitando. A acomodação em situações fúteis e preguiçosas só serve para estagnar a passagem pela existência.

A tarde, passamos pelo Museu dos Arcos. Quando capital de Goiás, era dali que os governadores emitiam os decretos. O guia, um funcionário público falante e gentil se ofereceu para fazer fotos pitorescas sugerindo posições políticas na mobília imponente. Aproveitou para abrir o coração e queixar da insensibilidade do governo com a preservação da história do país. Alegou trabalhar com abnegação e quase sem recursos, inclusive humanos. “Há necessidade de se fazer concurso para garantir a continuidade do cuidado com o acervo goiano”, desabafou.

A tardinha, descansamos num banco da praça do Coreto enquanto jovens chegavam esbanjando vitalidade. Desfilavam em carros cheios de alto-falantes acompanhados de lindas moças. Tudo natural e respeitando o espaço alheio. Quando o segundo carro também com som potente chegou, abafando o que estava na praça, desligaram-se os sons e a partir daí restaram somente o murmúrio das conversas. Casais de namorados passeavam em volta da praça e, a cada sombra, paravam para longos beijos. Esta praça recordou a do bairro Tristeza em Porto Alegre onde passei a adolescência. Também naquela ficávamos sentados nos bancos a paquerar as meninas que não cansavam de dar voltas, olhando apenas quando os garotos estavam distraídos.

Há algumas diferenças entre Pirenópolis e Cidade de Goiás. Enquanto naquela há grande movimentação na rua do álcool, onde pedestres consomem o comércio farto e turistas sentados comem e bebem nas mesas de restaurantes e pubs, em Goiás o movimento noturno se dá em volta da praça do Coreto, onde jovens conversam bebendo preparados em garrafas de refrigerante. O comércio de Goiás não abre a noite. Há dois ou três barzinhos superlotados que disputam clientes e é nítido que se respira literatura e cultura. Parece mais organizada. Pirenópolis é mais desordenada, as pessoas ficam mais soltas, o centrão de laser é maior e o comércio forte. As duas cidades tem seu charme, e acredito também seu público. Morador de Pirenópolis, Isócrates, dono da pousada Pouso, Café e Cultura, garantiu que o formato turístico de Goiás é melhor. Mais ordeiros e preservadores, praticam turismo sustentável.

Os restaurantes de Cidade de Goiás são intimistas e oferecem pratos bem preparados. Para quem gosta de refeições a base de peixe, há várias opções de escolha, todas especiais e com cartas de bom vinho. As cafeterias são bem decoradas, os comerciantes atenciosos e a cidade oferece um bom turismo a curtir.

No domingo, a convite do monge, assisti a missa celebrada pelo bispo de Goiás. Realizada em templo redondo possibilitou ampla visão entre o celebrante e os frequentadores, na maioria membros da população local. Na Homilia, em linguagem simples e num tom natural, discorreu sobre a missão do ser humano, que deve ser simplificada, pois se complexa pode se transformar um entrave para a execução.

À saída, Irmão Zé Maria, conduzia um grupo de visitantes pelas instalações e acenou para mim e Malu desejando o tradicional “vão com Deus”. Enquanto manobrava pela ladeira e pegava a estrada, pensava no quanto é possível crescer convivendo com os habitantes das cidades. Ao aceitar o convite para hospedar no Mosteiro abriu-se a oportunidade de acrescentar a minha vida uma história rica e um aprendizado ecumênico importante.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

A BISNETA E A BISAVÓ

A bisneta e a bisavó (arquivo pessoal)

Avó é considerada mãe duas vezes e avô não o é pai duas vezes. Deve ser por conta da gravidez, da amamentação, coisas de competência exclusiva das mulheres que os homens não têm direito de dar pitaco. Na viagem que fiz com a neta Taíssa para Porto Alegre, me senti avô em tempo integral por uma semana. Tanto que decidi narrar as histórias que presenciei e as peripécias desta menina de oito anos. Quem fala que somente as avós babam pelos netos, é porque nunca presenciou avô viajando com eles, principalmente sem avó para palpitar.
Nosso embarque rumo a Porto Alegre, aconteceu com atraso de duas horas. A escolha das poltronas foi estratégica, sendo uma na janela, para que a neta pudesse viajar vendo os flocos de algodão das nuvens e as cidades de Brasília e Porto Alegre, lá de cima.
Um adeus ao pai que a levou ao aeroporto e entramos no avião pela ala das prioridades. Trajava um macacãozinho vermelho, tênis branco e levava na mão a bolsa, um livro infantil sobre histórias de Leonardo da Vinci e uma garrafinha d’água, caso sentisse sede. Muito precavida a menina, deve ter ouvido que os vôos estão carentes de tudo. Pelo menos mataríamos a sede. Quando chegamos às poltronas, a surpresa, uma intrusa ocupara a da janela e ainda pediu para ficar alegando passar mal no trecho Belém/Brasília e que na janela se sentira melhor. “Afinal”, comentou, “logo que o avião sobe só aparecem nuvens e mais nada.” Brinquei que entendia que deveria viajar ali para respirar ar fresco, mas a permissão dependia da dona da poltrona, e apontei Taíssa. Após o apelo, a contragosto a neta cedeu e, mal o avião decolou, a doente virou para o lado e dormiu durante a viagem inteira. “Ela pediu a janela para dormir, vovô”.  Falei a menina que mentira tem perna curta e ela seguiu lendo o livrinho de Leonardo Da Vinci.
Chegamos a capital gaúcha e ao entrar no túnel de desembarque o calor era abrasador e Taissa sacou fora o casaco que vestira em Brasília. Olhava tudo em volta, e quando viu sua maleta na esteira, correu para pegá-la. O carro alugado nos esperava e rumamos para a casa da bisavó, minha mãe, que esperava para almoçar. No caminho apontou espantada, “vovô, o termômetro da rua está marcando 37 graus, nunca vi disto...”, externou assim a admiração com o clima gaúcho. Em Brasília as amiguinhas disseram que no sul faria muito frio.
Levá-la a Porto Alegre era apresentá-la não somente a cidade, mas também a bisavó, sua mãe três vezes segundo a cronologia popular. Taissa perdeu a avó paterna recentemente, o que ocasionou profunda mudança em sua vida e a viagem serviria de lenitivo. Foram dias de descoberta e aprendizado. Fez inúmeras amizades. Brincou de bonecas com a Eduarda do 104, de casinha com as gêmeas Carol e Bia do 203 e assim não pode reclamar de convivência somente com idosos. Quando perguntei o que mais chamou a atenção, “foi que conheci uma feiticeira de verdade, vovô” referindo-se a uma vizinha da bisa que pratica sessões de Umbanda e oferendas a imagens no apartamento 304, permanecendo a maior parte do dia com as janelas fechadas, abrindo-as somente à noite. Durante o dia, esgueira-se pelo corredor, subindo e descendo escada leve como sombra.
A bisa acostumada a viver sozinha aos oitenta e três anos demorou a acostumar com a bisneta, mas logo a menina dócil e gentil conquistou-a e passou a acompanhá-la aos passeios nos shoppings da cidade. Em casa aprendia com a bisa as lides domésticas, como lavar louça, preparar o café da manhã, arrumar as roupas, a cama e tomar banho só. Com certeza “ensinamentos importantes para se tornar de boa convivência e independente”, segundo a bisa.
Nossa rotina eram os passeios pela cidade e assim certo dia fomos a Rua da Praia onde pasmou com o movimento de pedestres. Acostumada com Brasília, andava direcionada pela mão da bisa e por várias vezes foi desviada aos trancos de passantes que a atropelavam cegos a fugir do calor do centro.
No Shopping Iguatemi, Taissa enfiou os patins, recebeu instruções e iniciou a patinação no gelo. E também os tombos. Era ficar de pé e cair. Quinze minutos de quedas de todo tipo. Até que estabilizou e deslizou melhor e quando parecia que estava tudo sobre controle, levou mais uma queda e desistiu. “Vovô, estou satisfeita, cansei de tanto cair”, disse chorando com a mão no bumbum. Foi atendida pelo bombeiro de plantão e saiu encharcada e mancando pelo shopping. Quando noutro dia, passei em uma pista de patinação e perguntei se queria exercitar, respondeu rapidamente, “não, vovô, nunca mais quero patinar”. Parece que deste esporte os pais estão livres.
No passeio por Ipanema, Taissa perguntou se o Guaíba era rio ou lago e quando respondi lago, abriu os olhinhos curiosos, “muito maior que o de Brasília.” E olhando para o infinito e os morros da cidade de Guaíba, “o que tem do outro lado, vovô?”.
Mas tudo que é bom acaba a semana findou e chegou o dia da volta. Após as despedidas chorosas da bisavó passamos na casa das cucas e rumamos ao aeroporto, loucos para sair do forno que estava Porto Alegre.
Na hora da vistoria das bagagens e da passada no detector de metais, o imprevisto. BI-BI-BI. Taissa foi barrada. Também fui, mas foi só retirar o cinto, o relógio e as moedas e passei. A mocinha retirou a pulseirinha, os brincos, os anéis e ..... BI-BI-BI. Retirou o cinto, por causa da fivela, o tênis, meia e........BI-BI-BI. E aí a fiscal empunhou o detector de metais manual, e ameaçou que passaria no corpo dela. Taíssa sentou no chão e disse “Vovô, o que é isto? Ninguém passa este negócio em mim, isto queima, nunca passei por isto.” Confundira o equipamento com o aparato chapinha usado quente para alisar  cabelos. Fiquei ali apalermado, sem saber o que fazer quando a moça impaciente da fila fez a descoberta que salvou a situação. “Tira o prendedor de cabelos”. Foi sacar fora e pronto. Do incidente sobrou a tosse que manifesta quando sofre estresse. E dei razão à neta por não deixar a fiscal passar o detector, afinal quem tolera tudo é porque não se importa com nada e nós adultos estamos acostumados a tolerar demais. A tosse cessou após tomar uns goles d’água e estávamos aptos a embarcar.
Na fila encontra a Luiza, colega de sala. Pronto, festa completa. A menina que vinha de Bagé, trocou de lugar comigo e viajaram juntas, cheias de novidades para contar. De minha parte, sentei com a mãe da Luiza, que segurava seu bebê de 4 meses. Viemos conversando, trocando fraldas e brincando com o menino.
No aeroporto entreguei Taissa ao pai que a afofou nos braços. Recebia de volta a filha mais experiente, conhecedora de coisas que somente as viagens e seus personagens nos ensinam, porque viajar é conhecer. Avô é para isto mesmo, curtir os netos e entregar aos pais para que eduquem. A viagem proporcionou muitas alegrias e isto permanecerá para sempre. Basta lembrar. E eu finalmente consegui me sentir pai duas vezes. Um avô completo.