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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A SERVA DO HOMEM

O mundo anda complexo e as pessoas, centradas em si mesmas, clamam ajuda para entender a vida. As religiões representam uma resposta às ansiedades da alma e tentam aplacar as inquietações. Na cultura oriental há definições filosóficas surpreendentes. A verdade ninguém tem, como dizia meu avô, quem foi não voltou para dizer como é.

Entender a relação do corpo com a alma é complexo. Sobre a destinação do corpo físico, o entendimento é que após a morte, ele desaparece num processo lento de decomposição. No entanto, a alma continua um mistério, mesmo sendo perene para a maioria das religiões.

A mídia cultua o prazer do corpo, apresentando símbolos que trariam felicidade, como carrões, jóias, roupas de marca e diversão com hora marcada. Alguns destes, inalcançáveis para a maioria.

Outro dia reuni amigos em casa e alguém afirmou que ao fazer algo ruim, presta-se contas e paga-se aqui mesmo. Sobre o tema desapego houve unanimidade, a maioria confessou não abrir mão de nada. Falei-lhes que Isaura seria exceção a regra.

Isaura Lívia Lopes é uma mulher de 76 anos. Chegou à capital federal em 1992, no final do conturbado mandato do presidente Collor e fixou-se na casa de parentes em Valparaizo. Vinha da jornada de inúmeras viagens pelo Brasil onde conhece estados de norte a sul. Viajando de avião ou ônibus, conheceu todas as capitais do Brasil, faltando apenas os territórios. Hoje mora no aeroporto JK há pelo menos 5 dos dezesseis anos que por lá transita.

Não casou e considera dádiva de Deus não ter filhos. Assim pode pregar a religião e morar onde preferir, sem interferências. O supervisor de segurança do aeroporto, Luis Gonzaga, afirmou que Isaura é protegida. Mora no coração de todos e é a palavra dela que acalma os ânimos dos passageiros quando há atrasos nos vôos.

Como ela evoca a palavra de Deus, Gonzaga admitiu ser este o fato de ser intocada. Quem de sã consciência mexeria em alguém amparada por tal força?

Aposentada do INSS, Isaura ganha um salário mínimo. Não tem problemas de alimentação, faz as refeições nas lanchonetes do terminal de passageiros. Tem sempre algo a dizer aos empregados do comércio local, atuação que lembra a de consultora espiritual. Assisti-a entregar um bilhete a funcionária de uma lanchonete com mensagens de otimismo e bem viver, amparada em versículos da Bíblia. Fala um bom português, escreve e lê fluentemente, apesar de se declarar surda há quarenta anos.

O desapego desta mulher é surpreendente. Dorme em bancos duros do aeroporto e não reclama. O bem maior é a pequena sacola de papel com roupas e miudezas, que leva para lá e para cá num carrinho de bagagens.

Confidenciou que foi noiva de enxoval e tudo e pediu para não entrar em detalhes.



Ao buscar explicação na filosofia indiana para a vida de Isaura, afirma-se que a situação atual dela a coloca no âmago do ciclo concêntrico da existência. Após passar por vários lugares pregando o que considera ser a verdade, este desapego aos bens materiais e a fixação num local como o aeroporto, com gente que chega e sai o dia inteiro, a aproxima do centro da vida, onde está localizada a purificação do ser.

A reunião em minha casa terminou em silêncio. Ninguém arriscou entender Isaura e seu procedimento. Alguns aceitaram a ótica da evolução da vida nas fases difíceis e outras a interpretaram como desequilibrada.

Todos emudeceram, afinal, como julgar alguém que vive assim com Ele e de quem se diz serva.